Surto antiindígena*

Boris Fausto e
Carlos Fausto
 


Na última semana, certos órgãos de imprensa, ideólogos conservadores e
setores militares sofreram um verdadeiro surto antiindígena, diante da
demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, que se
arrasta há três anos, desde sua homologação. Curiosamente, seis (isso
mesmo, seis!) arrozeiros que ocuparam terras públicas, reconhecidas
como indígenas, nas três últimas décadas, tornaram-se, de um dia para o
outro, vítimas de um suposto conluio, reunindo ONGs internacionais e
setores do governo. Do baú se retiraram inúmeros fantasmas – “ameaça à
soberania nacional”, “guerra étnica”, “internacionalização”, “risco ao
desenvolvimento”. E a responsabilidade por essas ameaças passou a ser,
para citar o título de um editorial do jornal O Globo, a “sandice
indígena”. Mas a sandice é exatamente de quem? O que se esconde por
trás dessas imagens de uma ameaça (pele) vermelha?

Trata-se,
é claro, de uma campanha bem orquestrada, conectando uma situação
regional ao espaço público nacional e às principais instituições da
República. Mas quais são os fatos? A Polícia Federal foi chamada a
fazer a desintrusão de uma área indígena quando já encerrado o
procedimento homologatório. Alguns poucos produtores de arroz se
armaram, com o apoio político local, para resistir, queimando pontes e
ameaçando usar táticas terroristas. Esses produtores não possuem
títulos legítimos sobre as terras que ocupam. Contudo, acatando ação
proposta pelo governo de Roraima, o Supremo Tribunal Federal (STF)
suspendeu a operação da Polícia Federal, adiando-a até o julgamento do
mérito da questão, em meio às críticas furiosas contra os direitos
indígenas.

Por que falar em direitos? Porque os povos falantes
de línguas das famílias karib e arawak que lá habitam são descendentes
de populações que chegaram à região há, possivelmente, 3 mil anos. A
partir do século 17, esses povos se viram colocados na intersecção do
colonialismo português e holandês. Objeto de disputa entre as nações
européias, sofreram ataques militares, foram escravizados, aldeados e
catequizados, mas resistiram, numa fronteira que só seria definida em
1904, quando cessou um contencioso territorial entre o Brasil e a
Inglaterra.

 
A Constituição de 1988 reconhece aos indígenas o
direito a essas terras e a regulamentação complementar define o
processo administrativo para tal reconhecimento. Isso não significa que
os índios passem a ser proprietários da área: eles têm a posse, mas não
o domínio, que pertence à União. Esse fato, aliás, foi bem ressaltado
pelo então procurador da República, Gilmar Ferreira Mendes, no âmbito
da Ação Cível Originária nº 362 (Estado de Mato Grosso versus União
Federal e Funai), em 1987.

Se as terras indígenas são parte dos
bens da União, cabe ao poder central protegê-las. O Exército ou a
Polícia Federal podem (e devem) lá entrar para garantir a segurança da
fronteira, combater atividades criminosas, enfrentar emergências
sanitárias, etc. Note-se que, no caso de Roraima, foram os arrozeiros,
e não os índios, que impediram a entrada da Polícia Federal. Por que,
então, seriam as terras indígenas, e não as grandes propriedades
privadas, que ameaçariam nossas fronteiras? E se os proprietários
fossem grupos ou corporações estrangeiras, haveria ameaça maior, como
certamente diriam os nacionalistas?

É triste constatar que se
faça tanto alarde em torno de 1,7 milhão de hectares habitados por 18
mil índios, com ocupação ininterrupta por milhares de anos, e poucos se
escandalizem com a apropriação ilegal de áreas imensas, às vezes
maiores do que essa, por um só proprietário. Boa parte dos títulos de
terra na Amazônia possui cadeias dominais duvidosas, gerando situações
de superposição e de violência. Enquanto o Estado brasileiro não
regularizar esta situação, o desenvolvimento econômico na região tende
a ser um rótulo enganoso para a depredação ambiental, a reprodução da
miséria e a usurpação do patrimônio público.

O que está em jogo
nessa polêmica não é apenas a Raposa Serra do Sol. É um princípio
constitucional que assegura a integridade física e cultural dos índios.
Transformar as áreas indígenas em “ilhas” é uma velha idéia (e um velho
sonho) conservadora. O saudoso ministro do STF Victor Nunes Leal, ao
tratar de questão similar, já alertava para os perigos, asseverando:
“Aqui não se trata do direito de propriedade comum. (…) Não está em
jogo (…) um conceito de posse, nem de domínio, no sentido civilista
dos vocábulos; trata-se do hábitat de um povo. (…) Se (a área) foi
reduzida por lei posterior, se o Estado a diminuiu de dez mil hectares,
amanhã a reduziria em outros dez, depois, mais dez, e poderia acabar
confinando os índios a um pequeno trato, até o terreiro da aldeia
(…)” (Recurso Extraordinário nº 44.585, Rel. Min. Victor Nunes Leal,
Referências da Súmula do STF, v. 25, pp. 360-61). Para evitar esse
risco, a Constituição de 1988 reconheceu aos índios o direito
originário sobre suas terras.

A defesa da diversidade étnica,
cultural e lingüística no Brasil não põe em risco a integralidade do
território nacional nem promove uma guerra étnica ou a criação de uma
suposta “nação indígena”. O que nossa Constituição garante é o direito
à diversidade, vendo nisso um elemento positivo para a construção de
uma Nação mais rica e mais generosa. Felizmente, já se vai o tempo em
que todos devíamos ser assimilados a um só modelo. Pena que alguns
continuem a flertar com uma visão de ordem-unida. Façamos votos para
que o STF tome a decisão acertada e não provoque um retrocesso em nosso
país.

 
Boris Fausto, historiador, é presidente do
conselho acadêmico do Gacint (USP) e autor, entre outros, de História
do Brasil (Edusp)

Carlos Fausto, antropólogo, é professor do Museu
Nacional (UFRJ) e autor, entre outros, de Inimigos Fiéis: História,
Guerra e Xamanismo na Amazônia (Edusp)
 
 
*texto publicado no Estado de São Paulo, 28/05/2008.
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