No
caso dos povos habitantes da Raposa/Serra do Sol, há que ressaltar o
seu padrão aldeão, pelo qual as aldeias se movimentam, não só devido a
fatores econômicos e/ou ecológicos – como a necessidade de alternância
das terras cultiváveis nas ilhas de mata ciliar existentes em uma
paisagem predominantemente de campos e montanhas – mas também em razão
de uma política que, baseada no parentesco, leva à fissão e à
multiplicação de grupos locais.
A demarcação em ilha, já
tragicamente experimentada pelos wapishana ao sul da Raposa/Serra do
Sol, ao confinar aldeias entre fazendas e outras formas de ocupação e,
portanto, paralisar seu movimento espaço-temporal, não garante, por
isso mesmo, a reprodução física e social desses povos.
Excetuando-se
a tentativa de demarcação da área, feita pelo Serviço de Proteção aos
Índios em 1917 – abortada, aquela também, pelos interesses da pecuária
recém-instalada no que eram, até então, terras públicas -, a definição
atual da Raposa/Serra do Sol é resultado de sucessivos grupos de
trabalho criados pela Funai a partir de meados dos anos 70, mais
precisamente em 1977, 1979, 1984 e 1988.
Todos eles
permaneceram inconclusos, ou seja, não geraram a providência
administrativa da demarcação devido às pressões políticas de posseiros.
Só
mais recentemente, em 1992, outros grupos de trabalho, dessa vez
interministeriais, produziram estudo aprovado pela Comissão Especial de
Análise da Funai no ano seguinte (parecer nº 036/DID/DAF, de 12 de
abril de 1993, publicado no "Diário Oficial" de União em 21 de maio do
mesmo ano).
Não obstante a sua aprovação na esfera
técnico-administrativa, a regularização fundiária da terra indígena
Raposa/ Serra do Sol foi adiada ainda pelos anos 90 afora.
Em
1996, por força do controverso decreto 1775/96 – que regulamentou o
direito ao contraditório por parte dos ocupantes de terras indígenas
afetados por atos administrativos – , os ocupantes da Raposa/Serra do
Sol fizeram, administrativamente, a defesa de seus interesses.
Curiosamente,
o maior número de contestações partiu não de ocupantes particulares,
mas do próprio governo estadual e de prefeituras -contestações que,
vale lembrar, foram todas refutadas com base em argumentos históricos,
antropológicos e jurídicos.
Ainda assim, a portaria da
demarcação só veio a ser publicada dois anos depois, em 1998 (portaria
nº 820, de 11 de dezembro de 1998).
A conjuntura criada pelo
decreto 1775/96 é importante porque, finalmente, parecia que a situação
política local adequar-se-ia à ordem legal: com efeito, segundo os
dados do CIR/Funai, em 1999, havia 207 ocupantes rurais (i.e.,
fazendeiros) e, em 2003, apenas 67; 37 deles foram indenizados pela
Funai, outros saíram após negociação direta com a associação indígena
CIR (Conselho Indígena de Roraima).
A homologação da terra
indígena, ato conclusivo no processo de seu reconhecimento oficial, não
veio, porém; enquanto tarda, a estratégia do governo estadual é a de
produzir fatos consumados, como municípios, e incentivando atividades
econômicas que, mal se iniciam, são apresentadas como panacéia, caso em
que se enquadra a atual produção de arroz, instalada, note-se, após a
demarcação, em 1998.
Os hiatos temporais -que se verificam entre
todos os atos- que acima listamos, encontram sua inteligibilidade no
cenário político mais amplo.
Roraima, Estado recente e de
baixa densidade demográfica, conta com uma bancada parlamentar
numericamente expressiva, cujos votos o governo federal não tem
dispensado em projetos controversos; desse modo, a demarcação da
Raposa/ Serra do Sol tem figurado como objeto precioso de barganha
entre as esferas federal e estadual nestas duas décadas de governo
civil.
Obviamente, as oscilações do Estado só fizeram acirrar a violência interétnica na região no mesmo período.
Seria,
portanto, enganoso supor que as desordens a que hoje assistimos – tanto
mais perplexos diante da leniência do governo e da mídia com relação a
tais fatos, pois o leitor pode muito bem imaginar a reação a bloqueios
e sequestros, fossem eles iniciativa de categorias sociais
descapitalizadas – diferem, por natureza, de outros surtos havidos,
como em 2000, quando missionários e agentes governamentais foram
atacados e outdoors foram espalhados por Boa Vista e Brasília,
exortando a violência contra órgãos do Estado.
Lá, como agora, o
governo estadual toma, oportunamente, a situação, de modo a criar seu
Dezoito Brumário paroquial, apresentando distúrbios praticados por um
pequeno grupo de arrozeiros e algumas facções indígenas como razão
suficiente para que o governo federal não cumpra seu dever
constitucional de homologar a terra indígena Raposa/Serra do Sol.
Em
2000, tal estratégia de pressão funcionou, fazendo com que o governo
FHC atirasse a homologação às calendas gregas. Para o presente, há que
parafrasear Gregório de Matos, porque a triste Roraima também está, sem
dúvida, em seu antigo estado. Pudera, é tanto negócio, tanto
negociante…